Segundo Marie Santini, do NetLab, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), PL das Fake News é primeiro passo na regulamentação
A responsabilização das redes sociais por parte de danos causados por anúncios contratados nas plataformas não é o suficiente para garantir todo o controle sobre seu possíveis prejuízos, afirma a pesquisadora Marie Santini, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em entrevista ao GLOBO, ela diz ver como necessário que o chamado PL das Fake News, que deve ser votado nesta semana pela Câmara, também preveja total transparência em relação a quem contrata e quais são esses anúncios.
— Nas plataformas, os anúncios são personalizados, cada um recebe um anúncio, é segmentado por pessoa. Por isso, é preciso ter um repositório público com todos anúncios. Se não, só é possível ver os anúncios que eu recebo, não os que você recebe. Esse é o problema — afirma Santini.
Nos últimos meses, pesquisadores do NetLab, grupo de pesquisa da UFRJ, identificaram a utilização de anúncios para ampliar a distribuição de conteúdos fraudulentos e também para promover golpes financeiros, além da sua disseminação nas eleições de 2022. Segundo Santini, o PL em discussão na Câmara é o primeiro passo na regulamentação do uso que hoje praticamente não tem controle.
O PL das Fake News deve prever a responsabilização das plataformas por parte dos danos causados por conteúdos pagos por terceiros. Como a senhora vê esse ponto do projeto?
Eu acho muito importante a presença disso na lei. Mas, antes disso, acho que é preciso também ter transparência em relação aos anúncios. Porque não adianta colocar uma coisa dessas e você não ter como monitorar os anúncios. O PL tem que estimular mais transparência e não desestimular a transparência que já existe. A Meta, por exemplo, tem uma biblioteca de anúncios onde é possível ver que a Google fez anúncios contra o projeto de lei, por exemplo. E a gente só consegue ver isso porque tem biblioteca, mas as outras plataformas não tem nada. Então, é preciso questionar se adianta responsabilizar se não se consegue ver os anúncios publicamente.
Qual a importância dessa transparência?
Anúncios na televisão ou na mídia impressa, por exemplo, são públicos. Nas plataformas, os anúncios são personalizados, cada um recebe um anúncio, é segmentado por pessoa. Por isso, é preciso ter um repositório público com todos anúncios, se não só é possível ver os anúncios que eu recebo, não os que você recebe. Esse é o problema. É preciso ter uma transparência na publicidade completa, como há em todos os outros meios. Aí sim podemos pensar na responsabilidade de que fala a PL.
Pensando em um contexto mundial, como esse projeto se insere?
Essa PL que a gente está tentando aprovar é mais básico. É o primeiro passo, não entra em muitos detalhes, mas é o primeiro passo para começar a regulamentar e é fundamental porque o Brasil é um mercado importantíssimo em número de usuários e em tempo gasto na plataforma. Mas é importante para a gente ir amadurecendo enquanto sociedade para ir avançando na regulamentação.
O NetLab identificou, inclusive, que golpes são aplicados usando anúncios nas redes sociais. A senhora acredita que a exigência prevista no PL da necessidade apresentação de documentos para a compra de anúncios é necessária?
Sim, até para defender o próprio consumidor. O que adianta a plataforma ter o dado e a Justiça não ter ou a Polícia não ter? É como esse problema de golpes. Quem nunca recebeu ou caiu numa tentativa de golpe? E os criminosos usam todas as ferramentas para aplicar esse tipo de golpes. Como que o policial vai investigar isso, como vai intimidar esses criminosos se não há esse tipo de transparência? Eles se escondem ali com muita facilidade. É um ambiente muito propício para esse tipo de coisa, é preciso torná-lo mais seguro e isso é feito por meio da transparência.
O que existe hoje em relação a essa identificação e o que poderia mudar para a diminuição dessa prática criminosa?
As plataformas têm dados, mas não tem processos de validação e autenticação. É muito fácil abrir uma página falsa do Facebook e anunciar. Não exigem um documento oficial. Conseguem identificar, talvez, pelo IP ou pelo cartão. Mas a verdade é que são dados que não autenticam o anunciante, de que você é você, de que o documento é seu. Isso eles não têm. Têm os dados que eles pedem, os dados que interessam para a operação comercial. O PL está exigindo que eles exijam, até porque se tiver um problema na Justiça, devem entregar esses dados.
Além dos golpes financeiros, é possível também evitar abusos em anúncios com objetivos políticos, como os usados para espalhar fake news nas eleições ou para promover mensagens de ódio, como no 8 de janeiro?
Então, as plataformas terão que ficar muito atentas a esses interesses coletivos, esses direitos difusos, porque vai ter que mexer na arquitetura, nos algoritmos, para impedir esses conteúdos que vão contra esses direitos difusos. Da mesma foram que se programa para combater a pornografia, cenas de tortura, que é uma política que ela entende que vale para todos em todos os contextos, vai ter que entender esses direitos difusos e estruturar algoritmicamente para combater qualquer mensagem contra eles. Não é uma questão individual, mas coletiva.
É possível ir além do que a lei eleitoral prevê?
A gente acha que todos os anúncios têm que estar no repositório, mas os anúncios eleitorais com mais informações que todos os outros anúncios. Na questão eleitoral, por exemplo, deve ser colocado o valor exato pago pelo anúncio. Não pode fazer um valor diferenciado para um partido diferente de outro, por exemplo. Nossa recomendação é que as exigências sejam um pouco diferentes para os anúncios eleitorais. Atualmente, isso não é feito. 80% do fundo partidário vão para as plataformas. Como que se valida o valor pago por anúncio? Como que vai achar caixa dois? Não tem como.
Por que a senhora acredita que exista uma resistência das plataformas em relação ao projeto de lei?
Eles vão ter que fazer mais investimento para moderar e não poderão ganhar dinheiro com todo o tipo de anúncio, terão que restringir. Eles têm muito incentivo financeiro para não ser regulamentado, como qualquer tipo de mercado, porque acreditam que vão ganhar mais dinheiro quando o mercado é desregulamentado. Mas o que está do outro lado é o interesse público, os danos causados à sociedade. Qualquer mercado, especialmente quando se trata de tecnologia, ela surge sem regulamentação alguma. Mas à medida que a tecnológica começa a ser muito central, mais pessoas começam a usar, é natural regulamentar. É o amadurecimento da tecnologia na sociedade, como é o carro, o avião, etc. A sociedade não tem como lidar com um setor que não tenha limites algum, sem restrição do que vai ser vendido, do que vai ser feito e das consequências sociais daquilo.