Conversas entre diretores foram usadas como provas de dois ex-funcionários, que delataram o esquema para a Polícia Federal; nelas, executivos usavam a frase “A vida como ela é” para se referir à versão real do balanço dos lucros, antes das fraudes.
O Fantástico localizou na Europa o ex-CEO do Grupo Americanas, Miguel Gutierrez. Ele é acusado de ser o principal responsável pelo esquema que manipulou o resultado financeiro do Grupo Americanas – que pediu falência no ano passado. Ele estava em Madri, na Espanha. E foi preso um dia depois de ser encontrado.
A investigação da Polícia Federal apontou que as contas da empresa foram severamente inflacionadas sob a gestão do ex-executivo. E ele teria feito isso por mais de uma década.
Por ser uma empresa de capital aberto, a Americanas era obrigada a tornar públicos os balanços financeiros periodicamente. No início do ano passado, ela anunciou que a dívida com os credores estava próxima de atingir R$ 43 bilhões. E o principal motivo era esse tipo de operação, inventada pela diretoria de Gutierrez, que provocaram um rombo de R$ 25 bilhões nas contas da empresa. Com essas operações, os executivos tiveram ganhos milionários.
As fraudes chamaram a atenção da Polícia Federal, que começou a investigação com apoio do Ministério Público Federal.
Na mira, estavam:
- Miguel Gutierrez, ex-CEO;
- Anna Christina Ramos Saicali, considerada braço-direito de Miguel;
- José Timotheo de Barros;
- Marcio Cruz.
Abaixo destes estavam mais 11 diretores, dentre eles, Flavia Carneiro – então responsável pela Controladoria da empresa – e Marcelo da Silva Nunes – antigo diretor financeiro. Os dois fizeram delação premiada no fim do ano passado. E explicaram como a antiga diretoria agia para esconder os números reais e inflar os resultados a serem divulgados ao mercado. Conversas, planilhas e parte da contabilidade foram utilizadas como provas.
Trocas de mensagens entre Flavia e Carlos Padilha, diretor operacional, mostram que certas oportunidades de fraudes, quando não eram aproveitadas, poderiam soar até como “provocação” a Miguel Gutierrez.
“Você enviou o resultado onde faltam R$ 340 mil para o 9,1% de ebitda (o lucro antes dos descontos de juros e impostos) virar 9,2%. Se minha conta está certa, parece quase uma provocação ao Miguel. Tem espaço para chegar a 9,2%?”, pergunta Carlos Padilha.
Com esse tipo de fraude se tornando comum, a antiga diretoria acabou criando duas Americanas: a real, que enfrentava problemas financeiros e tinha prejuízos; e a da ficção, com fraudes que obedeciam a vontade dos executivos, e que tinha as contas sempre no azul. E para manter as contas fictícias no azul, eles inventavam verbas concedidas por fornecedores, forjavam empréstimos em bancos e fabricavam operações com cartão de crédito.
A antiga administração queria manter as operações em sigilo até das auditorias. Assim, eles se reuniam secretamente quando os assuntos eram considerados mais sensíveis, em uma sala afastada, longe dos funcionários, que ganhou o apelido de “blindada” – ela ficava no segundo andar da sede da empresa, no Rio de Janeiro. Lá, segundo a PF, várias reuniões foram convocadas para que eles tratassem pessoalmente sobre a estratégia das fraudes.
Os três maiores acionistas e controladores da Americanas – Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira – não são alvo da investigação. Depois da descoberta das fraudes, eles investiram R$ 5 bilhões na recuperação judicial da empresa, e prometem investir outros R$ 7 milhões.
Nesta semana, a Polícia Federal cumpriu 15 mandados de busca e apreensão na casa de ex-diretores. A Justiça ainda determinou a prisão dos principais nomes da antiga diretoria, Miguel Gutierrez e Anna Saicali.
A reportagem do Fantástico localizou o endereço do ex-CEO da Americanas e foi até o local na última quinta-feira (27). Mas ao tocar o interfone, a resposta foi de que as pessoas não sabiam que ele morava lá. No entanto, ele foi preso na sexta-feira (28), em um acordo de cooperação com a Interpol. No sábado (29), ele foi solto depois da audiência de custódia. Ele não retornará ao Brasil, mas deverá se apresentar à Justiça espanhola a cada das semanas.
Já Anna Saicali, que viajou para Portugal no último dia 15, decidiu se entregar à Justiça. Ela foi conduzida pela Interpol até o Aeroporto de Lisboa neste domingo (30), e será acompanhada pela Polícia Federal assim que desembarcar no Brasil.
OUTRO LADO
Em nota enviada ao Fantástico, a defesa de Miguel Gutierrez informou que o executivo se encontra na sua residência, em Madri, e que compareceu espontaneamente à polícia para prestar os esclarecimentos solicitados.
Disse, ainda, que depois de ter acesso aos autos do processo, ele poderá exercer sua defesa. E reiterou que Miguel “jamais participou ou teve conhecimento de qualquer fraude, e vem colaborando com as autoridades”, a quem “manifesta sua absoluta confiança”.
A defesa de José Timotheo de Barros disse, também em nota, que o executivo “jamais praticou qualquer ato contrário aos interesses da companhia” e “seguiu à risca as instruções de seus superiores”. Falou, ainda, em “generalização da acusação” e em “espetacularização da operação policial”, e disse que está à disposição para “prestar esclarecimentos às autoridades que tenham imparcialidade”.
Os demais citados na nota não responderam aos contatos do Fantástico.
Confira a íntegra das notas oficiais das defesas dos envolvidos recebidas até a exibição da reportagem:
Miguel Gutierrez
A defesa de Miguel Gutierrez informa que o executivo se encontra em sua residência em Madri, na Espanha, no mesmo endereço comunicado desde 2023 às autoridades espanholas e brasileiras, onde sempre esteve à disposição dos diversos órgãos interessados nas investigações em curso.
Na data de ontem (28/06), o executivo compareceu espontaneamente ante as autoridades policiais e jurisdicionais com o fim de prestar os esclarecimentos solicitados.
Diante do acesso aos autos, Miguel agora poderá exercer sua defesa frente às alegações originadas por delações mentirosas em relação a ele.
A defesa reitera ainda que Miguel jamais participou ou teve conhecimento de qualquer fraude e que vem colaborando com as autoridades, prestando os esclarecimentos devidos nos foros próprios, manifestando uma vez mais sua absoluta confiança nas autoridades brasileiras e internacionais.
José Timotheo de Barros
Jose Timotheo de Barros vem manifestar que jamais praticou qualquer ato contrário aos interesses da companhia e seguiu à risca as instruções de seus superiores.
A generalização da acusação e a espetacularização da operação policial mostram que não se quer a verdade, mas a versão de conveniência de poucos.